Por Inaldo Lacerda Lima
“Amai os vossos inimigos, bendizei os
que vos maldizem, fazei o bem aos que vos odeiam; orai pelos que vos perseguem
e caluniam, a fim de serdes filhos de vosso Pai - que está nos céus.”
Jesus, (Mateus, 5:44-45.)
Como amar um inimigo? Conforme o
texto de Lucas (23:34) amou Jesus a todos aqueles que o perseguiram, caluniaram
e cheios de ódio exigiram a sua condenação, que efetivamente se cumpriu. Eis o
testemunho de Lucas: "E, quando chegaram ao lugar chamado a caveira, ali o
crucificaram, e aos malfeitores, um à sua direita e outro à esquerda. E disse
Jesus: Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem." Aí está o exemplo
do Cristo, no auge do martírio: "Pai, perdoa-lhes..." reconhecendo
que não sabiam o que lhe faziam. Eis que o Senhor leva-lhes em conta a
ignorância: não sabem o que fazem. O que existia neles era maldade mesmo. Além
de o matar, quiseram humilhar o Cristo, crucificando-o entre ladrões e
homicidas.
Mesmo assim, o Mestre ergue a voz na
direção do Céu e os perdoa a todos. Eram sacerdotes, eram fariseus, eram
doutores da lei. E, no entanto, não sabiam o que estavam fazendo, porque
dominados pelo ódio, o terrível gigante da alma a que já nos referimos numa
outra parte desta série, citando o professor Mira y Lopez.
Mais tarde, durante toda a Idade
Média, a maldade se repete, quando continuaram torturando e matando, sempre com
requintes de perversidade, isto é, queimando vivos os que lhes caíam em
desgraça. E, naturalmente, consoante o espírito do Cristianismo, suas vítimas
persistiram rogando ao Pai perdão para seus algozes. Mas será que eles, os
novos doutores da lei, continuavam sem saber o que faziam? Sim, de certo! E
muitos, ainda hoje, se julgam injustiçados pela própria História!...
Há alguns anos, caiu-nos nas mãos um
livro de um autor para nós desconhecido, intitulado "Os Papas na Idade
Média", de Geoffrey Barraclough, editado em Lisboa pela Editorial Verbo. E
pensamos: deve ser interessante conhecermos a história da Igreja de Roma, porquanto
pode existir aí um mundo de informações importantes, dado que se tratava do
último volume de uma série intitulada "História Ilustrada da Europa".
E de fato não nos enganamos. Apenas indagamos a nossa consciência sobre a razão
pela qual tivéramos de ler tal livro.
Esse livro nos permitiu compreender
certos fatos de um período trevoso da história da Humanidade e entender cada
vez mais e melhor a conduta de Jesus ao expressar-se: "Pai, perdoa-lhes
porque não sabem o que fazem."
Quando nos propusemos realizar,
pedagogicamente, este trabalho relacionado com uma exercitação do Evangelho, é
claro que objetivando um treinamento de auto-aperfeiçoamento com vistas à nossa
purificação, não podíamos deixar de fora aquilo que mais difícil nos parece: o
amor aos inimigos!
Se a história dos papas na Idade
Média - numa extensão de pouco mais de dez séculos - testemunha-nos a presença
do ódio no coração de homens que se propunham viver um amor que foi ensinado e
exemplificado pelo redentor da Humanidade, obviamente ou o Cristo não foi
compreendido ou o ódio aos inimigos é de um poder bem mais forte do que toda a
excelsitude do Amor, o que não deixa de ser uma absurdidade filosófica.
Logo, o problema maior estava no
atraso moral e intelectual do homem medieval, que não lhe permitia olhar para
dentro de si mesmo, a fim de identificar e desarraigar o seu maior óbice ao
exercício, desenvolvimento e ensino das lições do Evangelho do Cristo. De modo
que, antes de pensar na continuidade abnegada dos primeiros apóstolos, tiveram
as suas atenções voltadas para duas coisas muito perigosas: o poder e o luxo...
Reflitamos profundamente nestas
palavras de Allan Kardec, dirigindo-se aos espíritas, no capítulo XII de
"O Evangelho Segundo o Espiritismo": "Se o amor do próximo
constitui o princípio da caridade, amar os inimigos é a mais sublime aplicação
desse princípio, porquanto a posse de tal virtude representa urna das maiores
vitórias alcançadas contra o egoísmo e o orgulho."
Somente com o Espiritismo se nos
revelou o verdadeiro sentido das palavras do divino Amigo. Delas têm zombado os
homens por não lhes permitir o estágio evolutivo em que se encontram - mormente
na Idade Média - a interpretar o verdadeiro sentido das palavras de Jesus, que
não pretendeu, segundo Kardec, "que cada um de nós tenha para com o seu
inimigo a ternura que dispensa a um irmão ou amigo. A ternura pressupõe
confiança (...)."
Esclarece, ainda, o Codificador que
amar os inimigos não é ter por eles uma afeição que não está na Natureza.
Consiste tal amor em não lhes guardar ódio, nem rancor, nem desejos de
vingança.
Eis como nos adverte o Cristo, em seu
Evangelho: "Se, porém, não perdoardes aos homens as suas ofensas, também
vosso Pai não perdoará as vossas" (Mateus, 6:15). E ficamos a meditar,
ainda uma vez, no que dissemos acima em relação ao período de trevas da Idade
Média, quando os tribunais daquele chamado santo ofício se reuniam para
condenar seres humanos à morte nas fogueiras, e em nome de Deus. Tudo em
contradição com os ensinos de Jesus!
A propósito, examinando a Bíblia, no
livro de Josué - aquele que conseguiu o estapafúrdio "milagre" de
parar o Sol, que parado já é em relação à Terra, o que nos mostra a ingenuidade
ou inocência do homem bíblico, lá nos detemos, um pouco, no exame do ódio
contra os Cananeus, tudo porque Cão, o segundo filho de Noé, responsável pela
nação Cananéia, foi pelo pai amaldiçoado, e por um motivo fútil.
Jeová, apoiando as razões de Noé, não
ficou satisfeito com as vitórias de Josué contra os cananeus e autorizou a
total exterminação deles, no que foi desobedecido pela nação israelita que, ao
invés de exterminar Canaã, resolveu fazê-la tributária de Israel. (Josué,
17:13, e Juízes, 1:28.)
É deveras espantoso verificar quanto
ódio, quanta matança, quantos massacres e quantas vezes a palavra vingança é
repetida no livro dos livros!
É curioso que, no Evangelho, o
Plenipotenciário divino nunca se refira a Jeová, Elohim, ou Yhvh nem a Adonai.
Muitas dezenas de vezes repetiu a palavra Deus ou as expressões Pai, meu Pai,
vosso Pai. E ele era insistentemente testado por escribas e fariseus. E os
próprios judeus maravilhavam-se, dizendo: "Como sabe estas letras, não as
tendo aprendido?" (João, 7:15.)
Logo, incontestável é a sabedoria e a
autoridade do Cristo, não obstante em contradição com o espírito de ódio e
vingança que parece reger toda a conduta do chamado povo de Deus.
Vale acentuar, ainda, o encontro do
Mestre com a mulher cananéia ou cananeiana de que nos falam os evangelistas
Mateus (15:21-28) e Marcos (7:24-30), que desejava a cura de sua filha possessa
de um Espírito mau. E o Cristo encontra nela a oportunidade para mais uma lição
aos judeus e à Humanidade futura de modo geral. Ele lhe nega o pedido,
explicando a ela não ser justo dar aos cães o pão destinado aos filhos. E
diante da resposta que ela lhe dá, naturalmente inspirada, o Mestre se
maravilha e responde: "Mulher, grande é a tua fé: seja-te feito conforme
desejas!" E no mesmo instante ficou-lhe curada a filha. E os judeus
presentes não encontraram razão para censurá-lo, mesmo tendo ele dado a todos
testemunho de que não ignorava a procedência daquela mulher.
Tudo o que pretendemos, neste estudo,
é justificar a preocupação de Jesus com o amor aos nossos inimigos.
Nossas referências à ação má e
perversa dos detentores do poder secular, na Idade Medieval, e à ação
beligerante e vingativa do chamado povo de Deus na era recuada de sua história,
tem como objetivo lembrar aos atuais trabalhadores da última hora - vivendo,
hoje, sob as luzes do Consolador - que, em nós, a indumentária personalística
atual bem pode estar substituindo a indumentária brutal ou estúpida do homem
atrasado de ontem.
Amar os inimigos, os que nos feriram
ou ferirem, os que nos perseguiram ou perseguirem, os que nos caluniaram ou
caluniarem não é coisa impossível, já não é fardo tão pesado se, no
exercitamento do Evangelho, nós reconhecermos efetiva e sinceramente, não
apenas o preço (que nos pareça dor) mas o caminho e o portal de nossa
libertação, que tem o sabor da glória!
Se estivermos, cientes, pela fé
apoiada na razão, que Deus, nosso Pai, nunca permitirá que soframos o que não
merecermos sofrer, não nos será difícil entender que o inimigo de hoje poderá
estar representando o inimigo que ontem fomos de alguém, a quem devemos ter
machucado seriamente.
Além do mais, basta ler cada item,
cada frase, cada pensamento daquele capítulo XII de "O Evangelho Segundo o
Espiritismo", e sobre eles meditar para compreendermos o real sentido das
palavras do Cristo de Deus.
Amar os inimigos não é ir ao encontro
deles, abraçá-los e beijá-los. Amar os nossos inimigos, se os tivermos, ainda
que supostamente gratuitos, é jamais lhes guardar ódio, é perdoá-los sem
pensamento ou intenções ocultas, é nunca lhes opor obstáculo à reconciliação,
desejando-lhes sempre o bem e até vibrarmos de contentamento, quando formos
informados de um grande bem que lhes advenha; numa palavra, não guardarmos
contra eles qualquer ressentimento.
Sempre que nos surpreendermos na
emissão natural ou espontânea de um pensamento de amor, em favor de alguém que
haja procedido mal para conosco, estaremos recolhendo, aí, o testemunho de um
coração em processo de espiritualização. Que isto ocorra com todos nós.
Se porventura tivermos dúvida a
respeito do vigor da Doutrina Espírita dentro de nós, de que modo conseguiremos
dirimir tão amarga incerteza?
Bastará que consultemos a
consciência, na intimidade de uma meditação para a qual roguemos a presença do
divino Amigo de nossas almas, mais ou menos assim:
Como estarei aos olhos do Pai que me
observa neste momento?
Serei capaz de trair o meu próximo,
que em mim confia?
Serei capaz de mentir, ainda que
premido por imensa necessidade, sabendo que, mentindo, prejudicarei o meu
próximo?
Serei capaz de praticar um ato
desonesto, conscientemente?
Serei capaz de negar a alguém aquilo
que estiver ao meu alcance realizar?
E quanto àquele que se positive meu
inimigo, em função de sua conduta contra mim, serei capaz de negar-lhe perdão?
E em se apresentando ocasião, serei
capaz de prejudicá-lo?
E dentro do movimento superior do
Doutrina a que me julgo pertencer, em me sentindo incomodado por um
companheiro, serei capaz de contra ele guardar ressentimento ou aversão?
Quantas outras indagações poderíamos
alinhar aqui relacionadas com os nossos propósitos sinceros de renovação
espiritual, no sentido de nos sentirmos cada vez mais enriquecidos de traços
positivos em nossa personalidade! Que anseio de olharmos bem fundo no interior
de nós mesmos e não mais percebermos preocupantes sinais denunciadores da
possibilidade de novas precipitações em desastrosas quedas!
Diz-nos Kardec que "aquele que
pode ser, com razão, qualificado de espírita verdadeiro e sincero, se acha em
grau superior de adiantamento moral"¹. Mas, já estará isento da influência
solerte da vaidade que não suporta censura e das paixões que incitam o ódio?
Mais adiante, e no mesmo parágrafo daquele item 4, que se refere a Os bons
espíritas, conclui o sábio Lionês: "Reconhece-se o verdadeiro espírita
pela sua transformação moral e pelos esforços que emprega para domar suas
inclinações más."
Enquanto estivermos situados na
condição de Espíritos errantes, nunca seremos santos no sentido lato que se vem
dando a este termo, mas convém, recordando Pedro em sua 1ª Epístola (1:15), que
sejamos santos em sentido restrito ao termo em sua acepção inicial latina Sanctus,
isto é, sempre dispostos a lutar com todas as nossas forças a fim de que jamais
venhamos a sofrer censura da própria consciência por não sabermos impor
silêncio às nossas rivalidades e às nossas discórdias,² permitindo que, em função
delas, venhamos a causar dano à obra do Consolador.
Amar os inimigos importa também em
zelar, portanto, pela respeitabilidade da Doutrina a que nos devotamos. Pois
seria tristíssimo para nós termos informação de que alguém que simpatizara com
o Espiritismo, sem ser ainda espírita, haja se afastado de nosso meio ao
perceber rivalidades e discórdias entre companheiros.
Se amar os inimigos é evangelicamente
grandioso, não deixa de ser profundamente decepcionante para a consciência
afastarem-se espíritas uns dos outros por magoa ou ressentimento. Isso seria
retorno ao nosso passado histórico, quando não dispúnhamos das luzes do
Consolador prometido...
1. KARDEC, Allan. “O Evangelho
segundo o Espiritismo”, Rio de Janeiro, 112ª edicão, FEB, 1996, cap. XVII, item
4.
2. Idem, ibidem, cap. XX, item 5.
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