Allan Kardec
A questão da morte espiritual é um dos novos
princípios que assinalam os progressos da ciência espírita. A maneira por que
foi apresentada em certa teoria pessoal determinou, no primeiro momento, a sua
rejeição, porque parecia implicar o aniquilamento, em dado tempo, do eu
individual e assimilar as transformações da alma às da matéria, cujos elementos
se desagregam para formar novos corpos. Os seres ditosos e aperfeiçoados
seriam, na realidade, novos seres, o que é inadmissível. A equidade das penas e
dos gozos futuros só se evidencia com a perpetuidade dos seres ascendendo a
escala do progresso e depurando-se pelo trabalho e pelos esforços da vontade
própria.
Tais as consequências que se podiam tirar, a priori, daquela teoria. Entretanto, devemos convir em que ela não foi apresentada com a empáfia de um orgulhoso que pretendesse impor o seu sistema. Disse modestamente o autor que apenas desejava lançar uma ideia no terreno da discussão, dado que dessa ideia poderia surgir uma verdade nova.
Tais as consequências que se podiam tirar, a priori, daquela teoria. Entretanto, devemos convir em que ela não foi apresentada com a empáfia de um orgulhoso que pretendesse impor o seu sistema. Disse modestamente o autor que apenas desejava lançar uma ideia no terreno da discussão, dado que dessa ideia poderia surgir uma verdade nova.
Ao parecer dos nossos eminentes guias espirituais, ele
teria pecado menos quanto ao fundo, do que quanto à forma, que se prestou a uma
falsa interpretação. Isso nos determina a estudar seriamente a questão. É o que
tentaremos fazer, baseando-nos na observação dos fatos que ressaltam da
situação do Espírito, em duas épocas, para ele, capitais: a da sua descida à
vida corpórea e a do seu regresso à vida espiritual.
Por ocasião da morte corpórea, o Espírito entra em
perturbação e perde a consciência de si mesmo, de sorte que jamais testemunha o
último suspiro do seu corpo. Pouco a pouco a perturbação se dissipa e o
Espírito se recobra, como um homem que desperta de profundo sono. Sua primeira
sensação é a de estar livre do fardo carnal; segue-se o espanto, ao reparar no
novo meio em que se encontra. Acha-se na situação de um a quem se cloroformiza
para uma amputação e que, ainda adormecido, é levado para outro lugar. Ao
acordar, ele se sente livre do membro que o fazia sofrer; muitas vezes,
procura-o, surpreendido de não mais o possuir. Do mesmo modo, o Espírito, no
primeiro momento, procura o corpo que tinha; descobre-o a seu lado; reconhece
que é o seu e espanta-se de estar dele separado e só gradativamente se apercebe
da sua nova situação.
Nesse fenômeno, apenas se operou uma mudança de
situação material. Quanto ao moral, o Espírito é exatamente o que era algumas
horas antes; por nenhuma modificação sensível passou; suas faculdades, suas ideias,
seus gostos, seus pendores, seu caráter são os mesmos e as transformações que
possa experimentar só gradativamente se operarão, pela influência do que o
cerca. Em resumo, unicamente para o corpo houve morte; para o Espírito, apenas
sono houve.
Na reencarnação, as coisas se passam de outra maneira.
No momento da concepção do corpo que se lhe destina, o
Espírito é apanhado por uma corrente fluídica que, semelhante a uma rede, o
toma e aproxima da sua nova morada. Desde então, ele pertence ao corpo, como
este lhe pertencerá até que morra. Todavia, a união completa, o apossamento
real somente se verifica por ocasião do nascimento.
Desde o instante da concepção, a perturbação ganha o
Espírito; suas idéias se tornam confusas; suas faculdades se somem; a
perturbação cresce à medida que os liames se apertam; torna-se completo nas
últimas fases da gestação, de sorte que o Espírito não aprecia o ato de
nascimento do seu corpo, como não aprecia o da morte deste; nenhuma
consciência tem, nem de um, nem de outro.
Desde que a criança respira, a perturbação começa a
dissipar-se, as idéias voltam pouco a pouco, mas em condições diversas das
verificadas quando da morte do corpo.
No ato da reencarnação, as faculdades do Espírito não
ficam apenas entorpecidas por uma espécie de sono momentâneo, conforme se dá
quando do regresso à vida espiritual; todas, sem exceção, passam ao estado de
latência. A vida corpórea tem por fim desenvolvê-las mediante o exercício, mas
nem todas se podem desenvolver simultaneamente, porque o exercício de uma
poderia prejudicar o de outra, ao passo que, por meio do desenvolvimento sucessivo,
umas se firmam nas outras. Convém, pois, que algumas fiquem em repouso,
enquanto outras aumentam. Esta a razão por que, na sua nova existência, pode o
Espírito apresentar-se sob aspecto muito diferente, sobretudo se pouco
adiantado for, do que tinha na existência precedente.
Num, a faculdade musical, por exemplo, será mais
ativa; ele conceberá, perceberá e, portanto, fará tudo o que for necessário ao
desenvolvimento dessa faculdade; noutra existência, tocará a vez à pintura, às
ciências exatas, à poesia, etc. Enquanto estas novas faculdades se exercitarem,
a da música estará latente, mas conservando o progresso que realizou. Resulta
daí que quem foi artista numa existência, poderá ser um sábio, um homem de
estado, ou um estrategista noutra, sendo nulo do ponto de vista artístico e
reciprocamente.
O estado latente das faculdades na reencarnação
explica o esquecimento das existências precedentes, enquanto que, por ocasião
da morte, achando-se as faculdades em estado de sono pouco durável, a lembrança
da vida que acaba de transcorrer é completa, ao despertar o Espírito na vida
espiritual. As faculdades que se manifestam estão naturalmente em relação com a
posição que o Espírito tem de ocupar no mundo e com as provas que haja
escolhido. Entretanto, acontece muitas vezes que os preconceitos sociais o
desloquem, o que faz que certas pessoas estejam intelectual e moralmente acima
ou abaixo da posição que ocupam. Esse deslocamento, pelos entraves que
acarreta, faz parte das provas; cessará com o progresso. Numa ordem social
avançada, tudo se regula de acordo com a lógica das leis naturais e aquele que
apenas tiver aptidão para fabricar sapatos não será, por direito de nascimento,
chamado a governar os povos.
Voltemos à criança. Até ao nascer, todas as faculdades
se lhe encontram em estado latente, nenhuma consciência de si mesmo tem o
Espírito. As que devam desenvolver-se não desabrocham de súbito no ato de
nascer; o desenvolvimento delas acompanha o dos órgãos que terão de servir para
as suas manifestações; por meio da atividade íntima em que se põem, elas
impulsionam o desenvolvimento dos órgãos que lhes correspondem, do mesmo modo
que o broto, ao nascer, força a casca da árvore. Daí resulta que, na primeira
infância, o Espírito não goza em plenitude de nenhuma de suas faculdades, não
só como encarnado, mas também como Espírito livre. Ele é verdadeiramente
infantil, como o corpo a que se acha ligado, sem, contudo, estar neste
comprimido penosamente. A não ser assim, Deus houvera feito da encarnação um
suplício para todos os Espíritos, bons ou maus.
O mesmo, porém, não acontece com o idiota ou o cretino. Nestes, não se tendo os órgãos desenvolvido paralelamente às faculdades, o Espírito acaba por achar-se na posição de um homem preso por laços que lhe tiram a liberdade dos movimentos. Tal a razão por que se pode evocar o espírito de um idiota e obter respostas sensatas, ao passo que o de uma criança de muito pouca idade, ou que ainda não veio à luz, é incapaz de responder.
O mesmo, porém, não acontece com o idiota ou o cretino. Nestes, não se tendo os órgãos desenvolvido paralelamente às faculdades, o Espírito acaba por achar-se na posição de um homem preso por laços que lhe tiram a liberdade dos movimentos. Tal a razão por que se pode evocar o espírito de um idiota e obter respostas sensatas, ao passo que o de uma criança de muito pouca idade, ou que ainda não veio à luz, é incapaz de responder.
Todas as faculdades, todas as aptidões se encontram em
gérmen no Espírito, desde a sua criação, mas em estado rudimentar, como todos
os órgãos no primeiro filete do feto informe, como todas as partes da árvore na
semente. O selvagem que mais tarde se tornará homem civilizado possui, pois, em
si os germens que, um dia, farão dele um sábio, um grande artista, ou um grande
filósofo.
À medida que esses germens chegam à maturidade, a Providência lhes dá, para a vida terrestre, um corpo apropriado às suas novas aptidões. Ë assim que o cérebro de um europeu é organizado de modo mais completo, provido de maior número de teclas, do que o do selvagem. Para a vida espiritual, dá-lhes um corpo fluídico, ou perispírito, mais sutil e impressionável por novas sensações. À proporção que o Espírito se engrandece, a natureza o provê dos instrumentos que lhe são necessários.
À medida que esses germens chegam à maturidade, a Providência lhes dá, para a vida terrestre, um corpo apropriado às suas novas aptidões. Ë assim que o cérebro de um europeu é organizado de modo mais completo, provido de maior número de teclas, do que o do selvagem. Para a vida espiritual, dá-lhes um corpo fluídico, ou perispírito, mais sutil e impressionável por novas sensações. À proporção que o Espírito se engrandece, a natureza o provê dos instrumentos que lhe são necessários.
No sentido de desorganização, de desagregação das
partes, de dispersão dos elementos, não há morte, senão para o invólucro
material e o invólucro fluídico; mas, quanto à alma, ou Espírito, esse não pode
morrer para progredir; de outro modo, ele perderia a sua individualidade, o que
equivaleria ao nada. No sentido de transformação, regeneração, pode dizer-se
que o Espírito morre a cada encarnação, para ressuscitar com atributos novos,
sem deixar de ser o eu que era. Tal, por exemplo, um camponês que enriquece e
se torna importante senhor. Trocou a choupana por um palácio, as roupas
modestas por vestuários de brocado. Todos os seus hábitos mudaram, seus gostos,
sua linguagem, até o seu caráter. Numa palavra, o camponês morreu, enterrou as
vestes de grosseiro estofo, para renascer homem de sociedade, sendo sempre, no
entanto, o mesmo indivíduo, porém transformado.
Cada existência corpórea é, pois, para o Espírito, um
meio de progredir mais ou menos sensivelmente. De volta ao mundo dos Espíritos,
leva para lá novas ideias; um horizonte moral mais dilatado; percepções mais
agudas, mais delicadas. Vê e compreende o que antes não via, nem compreendia;
sua visão que, a princípio, não ia além da última existência que tivera, passa
a abranger sucessivamente as suas existências pretéritas, como o homem que sobe
uma montanha e para quem o nevoeiro se vai dissipando, abrange com o olhar um
horizonte cada vez mais vasto.
A cada novo estágio na erraticidade, novas maravilhas
do mundo invisível se desdobram diante do seu olhar, porque, em cada um desses
estágios, um véu se rasga. Ao mesmo tempo, seu envoltório fluídico se depura;
torna-se mais leve, mais brilhante e mais tarde resplandecerá. É quase um novo
Espírito; é o camponês desbastado e transformado. Morreu o Espírito velho, mas
o eu é sempre o mesmo.
É assim, cremos, que convém se entenda a morte
espiritual.
(Do livro "Obras Póstumas",
38, Allan Kardec)
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