Por: Leda Maria Flaborea
Sabemos que Jesus não deixou nada
escrito e por isso muitas palavras atribuídas a Ele não condizem com sua forma amorosa
de ensinar. Mas aqueles que combatem o Cristianismo em geral e o Espiritismo,
em particular, usam esses argumentos para contestá-lo
Voltemos um pouco no tempo que
antecedia a vinda de Jesus. Os conceitos éticos ainda não definidos, não
estruturados, cresciam num contexto perverso:
- predominância do direito da força
sobre a força do direito;
- escravidão política, social,
econômica, de credo e de raça;
- a família submetida ao patriarcado
soberano e às vezes cruel;
- os interesses girando em torno da
posse, fosse de bens materiais ou de pessoas.
Por outro lado, na religião ocorriam transformações acentuadas:
Por outro lado, na religião ocorriam transformações acentuadas:
- o paganismo, culto a vários deuses,
entrava em decadência;
- o sacrifício humano para aplacar a
fúria divina era substituído, em Israel, pelo sacrifício de animais,
transformados em valiosos recursos para absolvição dos pecados e oferenda de
gratidão a Deus.
O discernimento e a valorização da
criatura já se iniciavam, passando ela a ser vista como imagem e semelhança de
Deus.
Esse processo, que ainda continua em
nossos dias, teria que superar todos os impulsos agressivos que constituem a
natureza humana, vitimada pela herança animal resultante do processo evolutivo
como ser biológico, social e psicológico, ao qual ainda estamos submetidos. É
nesse momento, em que os primeiros sinais para a aquisição da consciência
individual e coletiva aparecem, que chega Jesus para auxiliar e facilitar a
transição da barbárie para a civilização.
Para enfrentar a sombra coletiva em
que aquela sociedade estava mergulhada, e também romper com as raízes que ainda
prendiam o homem aos sentimentos mais agressivos, Jesus precisou trazer uma
doutrina de compreensão e bondade, ternura e compaixão, que não podia ser
comparada a qualquer atitude de agressividade interna ou externa, fosse ela
ostensiva ou disfarçada.
Era preciso usar de energia e valor
moral para enfrentar os desafios que surgiam com a intenção de impedir a marcha
para a revolução espiritual que Ele trazia. E Ele não cedeu em nenhuma das
diretrizes que traçou para o cumprimento de sua tarefa: romper com as
estruturas do passado onde deveria haver: supremacia da humildade sobre o
orgulho; supremacia do altruísmo sobre o egoísmo; supremacia da compreensão e
da bondade sobre a intolerância.
Essa era, no mínimo, uma nova e
estranha moral, por ser diferente de tudo o que existia e por contrariar todas
as convicções prevalecentes.
Para usarmos os ensinamentos de Jesus
como recursos na superação das nossas dificuldades, precisamos estudá-los
Infelizmente, para a grande maioria
de nós, essa doutrina continua a ser estranha porque vem de encontro aos nossos
interesses pessoais, aos nossos desejos e caprichos egoísticos. “Não é
minha praia”, dizem uns. “Não tenho paciência para ficar ouvindo ou lendo”,
dizem outros, justificando a total incapacidade de compreender e muito menos de
aceitar os convites que Jesus nos faz para a transformação dos nossos
sentimentos, para a libertação dos comportamentos desajustados e doentios.
Mesmo entre os espíritas, essa
incapacidade existe. Muitas vezes compreende-se a necessidade de mudar, mas não
possuímos, ainda, os instrumentos íntimos para enfrentarmos a nossa
realidade. É por isso que ainda precisamos dos ensinamentos de Jesus.
Ele, na verdade, nos convida à terapia
da renovação espiritual.
Quando entendemos esse convite,
perguntamos: Jesus afastará nossas cruzes? Certamente que
não, mas seus ensinamentos transformam-se em instrumentos poderosos para
deixá-las mais leves. Contudo, para usarmos os ensinamentos como recursos na
superação das nossas dificuldades, precisamos estudá-los a fim de
compreendê-los e, compreendendo-os, refletir sobre eles para, depois, podermos
vivenciá-los em plenitude.
Sabemos que Jesus não deixou, ele
próprio, nada escrito e por isso muitas palavras atribuídas a Ele não condizem
com sua forma amorosa de ensinar. Aqueles que combatem o Cristianismo em geral
e o Espiritismo, em particular, usam esses argumentos para suas contestações.
É possível esclarecer algumas dessas
contradições, tirando algumas dúvidas. Em primeiro lugar, precisamos saber se
Jesus, efetivamente, as pronunciou, tendo em vista nada ter deixado por
escrito. E, em caso afirmativo, saber qual era o significado dessas palavras na
língua em que se expressava, pois, ao lermos ou estudarmos um texto antigo, não
importa qual ele seja, não podemos usar os mesmos significados de hoje. No caso
específico de Jesus, a língua hebraica não era rica e uma palavra poderia ter
mais de um significado. Temos dois exemplos que podem ajudar:
· no Gênesis, livro
do Velho Testamento, as frases que indicam a criação do mundo podiam significar
um período qualquer e o período diurno. Com o passar do tempo, a tradição
encarregou-se de colocar o mundo físico criado em seis dias.
· Outro
exemplo pode ser encontrado no Novo Testamento, quando Jesus ensina que é mais
fácil um “camelo” passar pelo buraco de uma agulha do que um rico alcançar o
céu. Nesse caso o termo que significa camelo também significa cabo. Assim, um
erro cometido uma única vez permaneceu até nossos dias. Isso mostra que a
tradução de uma língua para outra pode trazer enganos que alteram todo o real
significado que se pretende dar ao que se escreve.
A ideia de abandono da família não
condiz com a doutrina de Jesus; é, antes, a sua negação
Temos que observar, ainda, a natureza
particular de cada língua, a mudança do significado com o tempo, os erros dos
copistas daquela época (analfabetos, apenas desenhavam o que estava na frente;
qualquer observação que houvesse sido escrita à margem do documento seria por
eles copiada como se fizesse parte do corpo do texto), a tradução literal que
muitas vezes altera o significado real.
O cap. 23 de O Evangelho segundo
o Espiritismo traz quatro desses exemplos e que devem ser compreendidos de
forma figurada e não tomados ao pé da letra:
1) Se alguém vem a mim e não odeia
seu pai, sua mãe..., não é digno de mim. (Lucas, XIV: 25-27, 33).
Se pensarmos na palavra odiar dentro
do significado moderno do termo, a frase não fará sentido, pois aí não
encontramos a forma bondosa com que Jesus ensinava. Entretanto, se
considerarmos a possibilidade de significar amar menos ou aborrecer,
poderemos compreender que houve enganos na interpretação, porque na doutrina
amorosa do Cristo não havia espaço para a palavra odiar como a concebemos hoje.
2) Abandonar pai, mãe, esposa,
filhos, fazendas... para segui-Lo.
A ideia de abandono da família não
condiz com a doutrina de Jesus. É, antes, a sua negação. Mas, se pensarmos que
o ensinamento contido nessa passagem é para que aprendamos a colocar o
interesse da vida futura acima da vida material, então, há concordância com a
essência do ensinamento.
Fica claro que Jesus pretendeu nos
conscientizar de que a vida futura, ou seja, a vida do Espírito é mais
importante que a vida da matéria. É interessante notar que existe a necessidade
de separação para o progresso. Quem poderia condenar o filho ou a filha que se
separam de seus pais para casarem? E que dizer dos filhos que deixam suas
famílias para defenderem seu país?
Emmanuel, no livro Fonte Viva,
na lição 58, diz, referindo-se a essa passagem, que abandonar é renunciar. É
uma renúncia pessoal. Exemplifica dizendo que“se teus pais não procuram a
intimidade do Cristo, renuncia à felicidade de vê-los comungar contigo o divino
banquete da Boa Nova, e ajuda teus pais”. Lembra ele que renúncia com
Jesus não quer dizer abandono, mas expressa devotamento, pois ele próprio, esquecido
por muitos, relegado às agonias da negação, sentindo as angústias do
Amor-não-amado, não se afastou do convívio dos seus discípulos. Volta e diz
confiante: “Eis que estarei convosco até o fim dos séculos”.
O respeito pelos mortos não deve se
prender à matéria, mas se realiza pela lembrança do Espírito ausente
3) "Deixe que os mortos
enterrem seus mortos e você vá e anuncie o Reino de Deus." (Lucas,
IX: 59-60).
Difícil imaginar que Jesus censurasse
o filho que queria cumprir sua obrigação de piedade filial. Qual o sentido
desse ensinamento?
Respeito pelos mortos não pode ficar
circunscrito à matéria. A verdadeira vida é a vida do Espírito livre do corpo
físico.
O sofrimento pela perda não nos
permite perceber que o tempo para o cumprimento da encarnação encerrou-se:
prisioneiro que cumpre pena não é solto; prisioneiro que não cumpre pena é
solto.
Fica claro nessa passagem que o
respeito pelos mortos não deve se prender à matéria, mas se realiza pela
lembrança do Espírito ausente.
4) “Não vim trazer a paz, mas a
espada”. (Lc, XII: 49-53 e Mt, X: 35-36)
Ensinamento: Ele se refere aí ao
resultado que adviria do estabelecimento de sua doutrina.
Joanna de Ângelis diz-nos que a
estranha moral de Jesus veio como uma espada, para separar a mentira da
verdade; a posse violenta da conquista honrosa; nos lares, veio para derrubar
as construções rígidas do egoísmo, do patriarcado sombrio, do orgulho de clã e
de raça; que a espada veio ferir, fortemente, a ignorância, o orgulho, os
preconceitos de cada novo adepto, com lutas íntimas, pela não aceitação por
parte dos entes mais queridos, da nova escolha feita.
Exemplo disso foi Paulo de Tarso,
rejeitado pela família e tido como louco pelos antigos companheiros de tribuna.
A doutrina de Jesus não trouxe mesmo
a paz, pois surgiram opositores ferrenhos, ontem e hoje, tais os detentores do
poder, os exploradores da credulidade geral, os usurpadores de bens e de
recursos, os perseguidores dos ideais de elevação humana (dentro dos próprios
lares). Entretanto, os maiores opositores estão no íntimo de cada um de nós.
São os mais difíceis, pois é necessária a espada da decisão para superá-los e
deles nos libertarmos.
É verdade que Jesus separou pais e
filhos, cônjuges, irmãos, por fazerem oposição à decisão daqueles que se
entregaram às transformações morais, mas também os transformou em ponte para
tocar outros corações, pelos exemplos que dão ainda hoje.
Concluindo: A nova e estranha moral minava
as bases do status quo dos poderosos – como ainda hoje. Morto Jesus,
morta a ideia. Mas Jesus sabe que a paz virá, que a fraternidade se consolidará
através da fé esclarecida. Por isso prometeu e cumpriu enviando-nos O
Consolador, o Espiritismo, para nos ensinar o que Ele não pôde fazê-lo antes,
por causa do nosso pouco entendimento, e para nos lembrar daquilo que já havia
nos ensinado e que, por causa do nosso egoísmo e orgulho, esquecemos.
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