Nossa conta particular ante a contabilidade divina

Por: Leda Maria Flaborea
Ah! Se tu conhecesses também, ao menos neste teu dia, o que à paz pertence!” – Jesus¹
Nesta passagem evangélica, encontramos Jesus junto à cidade de Jerusalém, exclamando essas palavras numa referência a toda infelicidade que se abateria sobre ela. É notário que o Mestre tinha conhecimento de todas as aflições pelas quais a humanidade terrena passaria, por conta do endurecimento de seu coração, e por essa razão, podemos dizer que elas não se referiam, apenas, à cidade material, mas a todos os homens que, como a cidade, estavam destinados à ruína pela degradação em todos os setores da experiência evolutiva.
Mas o que significam essas palavras de Jesus? Vamos, por alguns instantes, imaginar como seria o mundo se cada um conhecesse o que lhe pertence para a paz interior, ou seja, o que cada um de nós tem que possa nos trazer paz. Entretanto, como desenvolvemos uma atitude de total desatenção a esse imperativo da vida, terminamos por perder tempo precioso em atritos dolorosos, através dos quais acabamos por adquirir débitos imensos diante das Leis Divinas.
Sabemos que um gesto ou uma palavra são capazes de movimentar energias poderosas, desequilibrantes ou tranquilizadoras, de alegrias ou de tristezas, de paz ou de guerras, e essas palavras de Jesus nos convidam a pensar nas oportunidades de serviço que estamos deixando passar.
Por alguns momentos, ainda, atentemos para a afirmação do Divino Amigo quando nos diz “ao menos neste teu dia”. Ao menos hoje, agora, vamos prestar atenção a esse chamamento amoroso. Vamos, presentemente, observar de quais serviços podemos dispor para atender à solicitação do Divino Amigo, e podermos avaliar o tempo que perdemos – consciente ou inconscientemente – no cultivo de outros valores. Para o Espírito diligente, sempre há convites ao trabalho.
Torna-se necessário, portanto, diante desses convites, que procuremos com dignidade compreender nossos deveres, os compromissos morais a que cada um de nós está sujeito com todos aqueles que nos cercam. Compete a cada um de nós meditar a respeito disso, lembrando que “o homem encarnado dispõe de um tempo glorioso que é provisoriamente seu, dado pelo Altíssimo, em favor de sua própria renovação”.²
É razoável que cada um procure compreender a substância dos atos que pratica nas atividades diárias, porque, mesmo obedientes às leis humanas, é imprescindível examinarmos a qualidade do que fazemos para que, no mecanismo da vida do qual somos peça da engrenagem, não estejamos sendo fator de ferrugem ou de atraso no relógio do tempo. É da Lei da Deus que toda semeadura será devolvida. É preciso agir com cuidado em cada dia, porquanto o bem ou o mal, tendo sido semeados, crescerão junto de nós, de conformidade com as leis que regem a vida.
Podemos dizer o mesmo daqueles que se revoltam diante das dificuldades, das nuvens que surgem no horizonte: nuvens de contrariedades, de projetos que não deram certo, de esperanças desfeitas e, sem perceber, acabam envenenando as fontes da própria vida. Desejaríamos, todos nós, um céu azul no horizonte, um Sol brilhante durante o dia e um céu estrelado à noite. No entanto, as nuvens aparecem e a perplexidade toma conta de nós. Todavia, é preciso ficar atentos a esses momentos de sombras. A existência terrena impõe angústias e aflições a todos aqueles que lhe vivem a experiência. Porém, é conveniente que guardemos a serenidade e a confiança nesses momentos, pois é nessas sombras, comuns na luta planetária, que o Pai oculta lições profundas, através das quais nos fala sábia e amorosamente.
Não ignoramos a imortalidade do Espírito que habita em nós e, como tal, é fácil imaginar que uma única existência não seria o suficiente para aprendermos tudo aquilo de que necessitamos, a fim de sermos criaturas melhores e mais felizes. Melhores, porque precisamos de tempo e oportunidades para aprender a desenvolver as virtudes que Jesus veio nos ensinar. E se não tivermos esse tempo e essas oportunidades, não conseguiremos refazer nossas escolhas equivocadas, retomando o caminho do amor. Felizes, porque ao cuidarmos de cumprir nossas obrigações, poderemos sentir que todos os fantasmas de nossa inquietude são afastados, e que grande parte dos problemas sociais do mundo poderia ser resolvida naturalmente.
É, portanto, necessário que cada um conheça o que lhe toca, para que a tranquilidade individual se estabeleça em seu íntimo, e perceba que, ao cuidar de sua própria conta particular, ou seja, de seus créditos e de seus débitos com as Leis Divinas, estará, certamente, colaborando para que todos, ao seu redor, cuidem também das suas próprias contas, sem que nos transformemos em policiais do Evangelho. Quando assumimos a postura de zeladores da conta alheia, estamos nos candidatando a invasores da felicidade e da tranquilidade do próximo e, certamente, nos preparando para o ingresso em campos de grande sofrimento.
Mas Jesus não se cansa de nos convidar à prática do bem. Os apelos do Mestre continuam e se renovam a cada instante. Aqui, é um livro amigo que nos revela a verdade de maneira silenciosa. Ali, é um amigo generoso que insiste em que mudemos nossas atitudes, tendo em vista as realidades luminosas da vida. Acolá, é a doença no próprio corpo ou em pessoa querida que nos alerta para a necessidade de mudanças, valorizando mais o tempo que dispomos para o trabalho de renovação. E o que dizer, ainda, dos nossos pais, dos nossos mestres, do sentimento religioso que nos consola e que está sempre nos impulsionando ao exercício do amor. Tudo isso não são convites à prática do Bem?
O convite ao bem sempre nos acompanhou, mas dificilmente o percebemos. Por rebeldia, os homens costumam rir, passando, obrigatoriamente na direção de desencantos, de frustrações e desesperanças que, com o tempo, os obrigarão a equilibrar seus pensamentos. E se isso acontecerá, queiramos ou não, por que esperar que a necessidade se instale, que a dor tome conta de nosso ser, que a sombra nos açoite sem piedade, quando podemos seguir, calmamente, por estradas de luz e sem vacilar, em direção ao Pai Criador?
E por qual razão criamos tanta dificuldade para atender a esse chamamento? Porque temos o direito de escolher entre o certo e o errado, entre o fazer e o não fazer.  Temos também uma consciência que nos estimula e nos sustenta, para que decidamos, sempre, pelo certo e como ela é antagônica às seduções dos interesses e às seduções do coração, quase sempre sucumbimos.
Diante disso, seria bom perguntarmos: obedecemos a quem?  Aos impulsos baixos da natureza ou aos apelos do Mestre para o serviço de autoelevação? Se ainda não conseguimos definir a quem estamos submetidos, melhor parar e refletir para verificar se não estamos transformando obediência que salva em escravidão que condena. Para que o homem não se perdesse, Deus estabeleceu gradações evolutivas no caminho até Ele. Instituiu a lei do próprio esforço na aquisição dos supremos valores e determinou que esse homem aceitasse Seus desígnios, sem rebeldia para que pudesse ser, verdadeiramente, livre. Entretanto, o homem preferiu construir sua própria escravidão, organizando seu cativeiro através de desmandos, da posse material, da ganância, da vaidade, do orgulho e tantos outros sentimentos que nos ligam a condições de inferioridade.
Temos hoje plena consciência das nossas imensas dificuldades para praticar o Evangelho, rota segura para que cumpramos a lei do próprio esforço. Entendemos que ninguém poderá realizar por nós o que nos compete. E, justamente por termos consciência de tudo isso, graças ao conhecimento evangélico que já possuímos, é que não podemos mais adiar o que precisamos fazer. E o que é que precisamos fazer? A resposta surge clara diante do nosso tema: zerar nossa conta particular com as Leis de Deus.
Seria interessante lembrar, para finalizarmos, o que o Evangelho pergunta: se não houvesse as dificuldades, se não tivéssemos opositores, se não nos sentíssemos abandonados, se nunca fôssemos criticados ou ridicularizados, se os entes amados não nos trouxessem problemas ou se nunca fôssemos induzidos às tentações de todas as espécies, de que maneira seríamos obrigados a entesourar as luzes da experiência que nos permite a prática de virtudes que nos fortalecem a alma?

Bibliografia:
1 - LUCAS, 19:42.
2 – EMMANUEL (Espírito). Pão Nosso, [psicografado por] F.C.Xavier, 17ª ed., FEB, Rio de Janeiro/RJ- lição 38.
Outras fontes:
KARDEC, Allan.  O Evangelho segundo o Espiritismo, Capítulos 16 e 17.
EMMANUEL (Espírito). Palavras de Vida Eterna – [psicografado por] F.C.Xavier, 20ª ed., Edição CEC - Uberaba/MG – 1995, lição 14.  
.


Nenhum comentário: